despautère.
14.9.14
Sobre São Paulo II
13.4.14
Mundo velho
Os anfitriões velhos de guerra os receberam acaloradamente como uma solução ao domingo que, chegado a sua metade, podia tornar-se um pouco melhor e menos tedioso. "Entrem, entrem!" com surpresa e entonação animadas de muitos anos de visitas e recepções.
Ao que todos da casa haviam sido pegos de surpresa, não havia mesa posta nem nada pronto para o almoço que, em domingos corriqueiros como aquele, era servido tardiamente; como tardios, lânguidos e arrastados iam todos os domingos ao seu fim.
Que coincidência, aquela. Haviam perdido viagem, foram visitar a filha e, descobriram depois da longa fila dominical, que esta estava de "castigo" e que não poderia receber visitas. Então toda aquela macarronada não seria em vão.
A anfitriã tratou logo de preparar a mesa, consentida a partilha do almoço a fim de evitar desperdícios. Que coincidência.
Era suco? Refrigerante? O que era aquele líquido âmbar dentro da garrafa pet? Então explicaram que as garrafas de plástico só entravam sem rótulos. Alimentos, somente em duas embalagens transparentes de plástico. Balas, apenas desenroladas do invólucro de papel, papel higiênico, sem o cilindro central de papelão. À prova de.
Os pontos dolorosos daquela visita que falhara eram tratados de forma casual; a tia espantava com a mão, como quem espalhava o assunto para fora da mesa, quão sujo era.
O almoço transcorreu suavemente a partir dali, entre conversa sobre bispos e paróquias e notícias sobre familiares. Então todos, satisfeitos e separados por gêneros, partiram para conversas mais íntimas enquanto digeriam o dia e o almoço.
O vento da tarde assoprava o tédio denso para dentro da casa e, por volta de duas ou três horas depois, café fresco fora colocado sobre a mesa e mais um vasilhame fora aberto; agora, com bolo de chocolate.
Em alguns lugares e, dependendo de quem estava de plantão, qualquer conteúdo das vasilhas era perfurado em busca de algo suspeito.
O aroma do café invadia o ambiente e inebriava os presentes. Um calmo comentário ou outro sobre o que estava passando na tv, apesar da energia pulsante que o café lhes causava.
Mas souberam da morte da fulana? Não souberam, mas receberam a notícia, ali, naquele instante, com a serenidade dos anos. Tão jovem, que pena era. Lembravam-se dela, é claro. Havia causado trabalho à mãe adotiva porque era arredia, rebelde. Morrera sem dentes, magra. Deram-lhe os sintomas como palpite da causa, mas não ousaram nomear o mal.
Estava tudo suspenso no ar.
Sim, lembrava-se dela, disse o anfitrião. Meninada bonita, era aquela. E rebeldes... Acabaram saindo de casa, se afastando. E a pergunta pairava no ar, que mal tinham cometido?
Pausa e métrica ao falar. A nostalgia subia com os vapores do café e se misturavam ao torpor do domingo.
Os hiatos, comuns àquela altura da vida, eram cheios de significado e peso.
Que mal tinham cometido até aqui?
5.1.14
Consonância
Sempre quis mostrar a tristeza profunda que residia atrás de seus olhos, mas nunca tivera atenção. Então, ao invés disto, exibiu várias lâminas de felicidade. Lâminas fatiadas e finas, superficiais. Uns fragmentos que, se juntássemos, não compunham um quebra-cabeças completo.
Sabia que sempre lhe faltaria essa peça. Ou melhor, sempre sobraria aquela outra.
Vários sorrisos, mas nenhum olhar mais profundo. Muitas frases feitas e silêncios entre elas.
Tudo transcorria com tranquilidade no mundo dos serenos. Mas ninguém iria dormir um sono com sonhos tranquilos aquela noite. Nem na próxima. Um som de apito para cães, aquela vibração dentro da caixa torácica, quando o silêncio é tão esmagador. E a solidão tão cortante.
E a felicidade estava em cacos. Pedacinhos pequenos que teimavam em juntar, mesmo que isso não tivesse significado lógico: juntava-se um lado, o outro se desfazia. Nunca satisfeitos.
E a vida passava o tempo tentando casar o que não precisava, de olhos fechados, desatenta.
24.11.13
Sonho III
O olhar de Vera era de medo, de sofrimento, sobretudo. Um sofrimento causado por extrema covardia e falta de pulso firme. Com olhos trêmulos, Vera balançava a cabeça negando, dizendo "não" para qualquer ação que a tirasse daquela situação. Que a tirasse daquela perseguição.
Algo sobre uma figura masculina opressora, predadora. Oprimia Vera, esmagava Vera contra o solo.
E Vera tinha mãos e olhos trêmulos, impotentes.
Eu negava com a cabeça, com palavras absurdas. Faça algo, Vera! Você não pode se submeter a isso!
E não era possível. Se ele notasse alguma reação, se ele notasse alguma rebeldia, a represália seria imediata.
Faça! Grite! Mude!
Vera nega, e sugere que eu me acalme. Pegue seu café no fogão, se acalme.
Eu vou até a cozinha e em movimentos lentos de câmera noto o gás escapando.
E ao mesmo tempo que a explosão ocorre, sei que fora ele.
Cor negra e som agudo final aos ouvidos.
Eu não posso morrer assim, repeti diversas vezes dentro de minha caixa craniana. Em desespero, no início. E logo com certo alívio e curiosidade por ainda haver consciência. A escuridão e som agudo continuaram até que eu despertasse às 6 da manhã.
16.7.13
Morte em linha reta
9.7.13
Uma lembrança, antes que me esqueça dela de novo.
Fomos de carro, meu irmão e eu, ao supermercado.
Peguei o pacote de fraldas caríssimo e nos dirigimos ao caixa.
Uma fila gigantesca.
Meu irmão não cultiva muito o silêncio. Ele é como a grande esmagadora parte da população que gosta de papear, puxar assunto e não deixar espaços silenciosos. Sim, tendencio ao silêncio: é um bom exercício. E estava de mau humor. Mas ele, vez ou outra, consegue dissipar o mau humor das pessoas. Afrouxei.
A senhora que estava a nossa frente na fila escutava nossa conversa. Só falávamos bobagens então não tinha importância alguma.
Não lembro qual parte do diálogo fez com que a dona se voltasse pra gente pra rir. Daí começamos a conversar descompromissadamente. Falávamos sobre dietas.
Ela disse que sempre que ia à nutricionista e esta te indicava uma dieta, ela sempre acabava engordando.
"Sigo minha própria dieta, sabe. Quando faço por conta, emagreço. Aí, e médica passa aquela lista de comidas pra comer - tudo bem caro, por sinal (pra ser saudável tem que pagar caro em coisas light e diet) - e seguia à risca, tudo certinho. E não é que engordava? Desisti. Tá vendo isso aqui? Tô levando esse monte de carne é pro churrasco de dia das mães. Mas é pro marido, pra criançada. Não como nada disso não, muito pouco. O problema é colesterol. Problema do coração, pressão alta - sofro de pressão alta. E tem diabetes na família também. A gente se preocupa com tudo isso. Mas e o tempo pra ir fazer caminhada de manhã? E essa da dieta também, como é que faz certo?".
Quando estávamos indo pro carro, esperava algum comentário debochado do meu irmão. Ele só disse: Viu, somos todos muito parecidos mesmo.