14.9.14

Sobre São Paulo II

Quem vive em São Paulo e, se por acaso quiser escrever como é tal experiência, que coloque como título "diário de bordo".
Cheguei a mil conclusões sobre São Paulo nesses três meses à bordo. Todas são conclusões mutáveis mas, a mais interessante é a do conceito de navio, mar. Essas coisas.
 Morar em São Paulo à trabalho sempre será como ter um oceano a ser explorado. Vasto demais pra desbravar, com tempo livre de menos. Como passar por uma vitrine de doces todos os dias, salivar, e só. Ou melhor: como ver a ilha do tesouro logo à frente e perceber que é uma miragem. 
O trânsito de São Paulo é fantástico. Fabuloso, no sentido de fábula mesmo. A rua congestionada que vi ontem, em determinado horário, não estará congestionada amanhã. Os motoristas, com toda a destreza que nunca entenderei, acham canais e rotas alternativas mágicas. A imprevisibilidade do trânsito de São Paulo me lembra um pequeno trauma de infância; um que obtive ao ser derrubada por uma onda, quando menininha. O interessante é: sempre haverá ondas. Não importando a intensidade delas.
Peguei tempo frio aqui. Inverno. Acostumada que estava a sempre sentir calor nas cidades que morei, me senti acolhida pelas massas de ar polar que aqui estacionaram. E todas as pessoas usam casacos compridos e pretos. Então você atravessa a pista de quatro faixas contra um fluxo de pessoas muito agasalhadas às 7 da manhã, mesclando com o tempo cinza e fuligem. Achei isso extremamente paulistano. Não importa quão ruim está o tempo, o barco tem que continuar sua viagem. Mesmo que isso signifique ficar sem água e respirando um ar muito poluído, que deixa seus olhos ardendo e sua garganta arranhando. Carry on!
Dos fatos curiosos sobre a capital, essa do "tempo louco" eu sempre soube, mas não tinha noção prática. Quando o inverno foi se descaracterizando lá pelo meio de Agosto, diversas estações passaram por aqui, confundindo os sentidos e o sistema imunológico de muitos, aos quais me incluo. E, devo admitir, que as pessoas de São Paulo, antes vestidas elegantemente de preto no frio do inverno, ao sol, em plena luz radiante do sol, parecem um pouco encardidas. Digo, a aparência das tribos daqui, que são várias, são mil, para que se mantenham, não parecem reluzentes quando o sol brilha. É só entrar no metrô num horário de passeio e constatar as calças sob vestidos, cabelos verdolengos, batons vermelhos demais, aros grossos demais, alargadores largos demais, coisas encardidas, enfim. Calateboca. É que tenho essa outra teoria de que ninguém mais quer ser normal em São Paulo. Pra quê o turbante, moça!? Me sinto mal usando roupas sem estampa, mas logo passa. Foi uma náusea, náusea por conta dos balanços desse barco.
Reitero o que disse no primeiro "Sobre São Paulo": todos aqui são forasteiros. Forasteiros que entraram de gaiato e que lutarão bravamente para não andar sobre pranchas. Daí chegamos a conclusão definitiva que São Paulo é um navio pirata.
Ouço murmurinhos em todas as esquinas, em todas as lojas que entro, em todas as estações: sou do interior, sou do interior. Como que, sendo de dentro, passamos pro lado de fora, ao céu aberto, à deriva.
Da luta levada bravamente, vem outra constatação dos piratas daqui. São Paulo vai endurecendo os corações, vai calejando teu dia a dia, vai acostumando seus olhos para os tons de cinza. Como diz o paulistano Lourenço Mutarelli, a vida é dura. Tão mais dura e angulosa é em São Paulo.

***

(continua)





13.4.14

Mundo velho

O casal de tios chegou à casa, por volta da hora do almoço, sem avisar da visita. Chegaram com roupas um pouco puídas, como quem não queria chamar a atenção. Foram descarregando o carro, algumas vasilhas grandes repletas de comida, que o tio empilhou antes de entrarem à casa.
Os anfitriões velhos de guerra os receberam acaloradamente como uma solução ao domingo que, chegado a sua metade, podia tornar-se um pouco melhor e menos tedioso. "Entrem, entrem!" com surpresa e entonação animadas de muitos anos de visitas e recepções.
Ao que todos da casa haviam sido pegos de surpresa, não havia mesa posta nem nada pronto para o almoço que, em domingos corriqueiros como aquele, era servido tardiamente; como tardios, lânguidos e arrastados iam todos os domingos ao seu fim.
Que coincidência, aquela. Haviam perdido viagem, foram visitar a filha e, descobriram depois da longa fila dominical, que esta estava de "castigo" e que não poderia receber visitas. Então toda aquela macarronada não seria em vão.
A anfitriã tratou logo de preparar a mesa, consentida a partilha do almoço a fim de evitar desperdícios. Que coincidência.
Era suco? Refrigerante? O que era aquele líquido âmbar dentro da garrafa pet? Então explicaram que as garrafas de plástico só entravam sem rótulos. Alimentos, somente em duas embalagens transparentes de plástico. Balas, apenas desenroladas do invólucro de papel, papel higiênico, sem o cilindro central de papelão. À prova de.
Os pontos dolorosos daquela visita que falhara eram tratados de forma casual; a tia espantava com a mão, como quem espalhava o assunto para fora da mesa, quão sujo era.
O almoço transcorreu suavemente a partir dali, entre conversa sobre bispos e paróquias e notícias sobre familiares. Então todos, satisfeitos e separados por gêneros, partiram para conversas mais íntimas enquanto digeriam o dia e o almoço.
O vento da tarde assoprava o tédio denso para dentro da casa e, por volta de duas ou três horas depois, café fresco fora colocado sobre a mesa e mais um vasilhame fora aberto; agora, com bolo de chocolate.
Em alguns lugares e, dependendo de quem estava de plantão, qualquer conteúdo das vasilhas era perfurado em busca de algo suspeito.
O aroma do café invadia o ambiente e inebriava os presentes. Um calmo comentário ou outro sobre o que estava passando na tv, apesar da energia pulsante que o café lhes causava.
Mas souberam da morte da fulana? Não souberam, mas receberam a notícia, ali, naquele instante, com a serenidade dos anos. Tão jovem, que pena era. Lembravam-se dela, é claro. Havia causado trabalho à mãe adotiva porque era arredia, rebelde. Morrera sem dentes, magra. Deram-lhe os sintomas como palpite da causa, mas não ousaram nomear o mal.
Estava tudo suspenso no ar.
Sim, lembrava-se dela, disse o anfitrião. Meninada bonita, era aquela. E rebeldes... Acabaram saindo de casa, se afastando. E a pergunta pairava no ar, que mal tinham cometido?
Pausa e métrica ao falar. A nostalgia subia com os vapores do café e se misturavam ao torpor do domingo.
Os hiatos, comuns àquela altura da vida, eram cheios de significado e peso.
Que mal tinham cometido até aqui?


5.1.14

Consonância

Sempre quis mostrar a tristeza profunda que residia atrás de seus olhos, mas nunca tivera atenção. Então, ao invés disto, exibiu várias lâminas de felicidade. Lâminas fatiadas e finas, superficiais. Uns fragmentos que, se juntássemos, não compunham um quebra-cabeças completo.
Sabia que sempre lhe faltaria essa peça. Ou melhor, sempre sobraria aquela outra.
Vários sorrisos, mas nenhum olhar mais profundo. Muitas frases feitas e silêncios entre elas.
Tudo transcorria com tranquilidade no mundo dos serenos. Mas ninguém iria dormir um sono com sonhos tranquilos aquela noite. Nem na próxima. Um som de apito para cães, aquela vibração dentro da caixa torácica, quando o silêncio é tão esmagador. E a solidão tão cortante.
E a felicidade estava em cacos. Pedacinhos pequenos que teimavam em juntar, mesmo que isso não tivesse significado  lógico: juntava-se um lado, o outro se desfazia. Nunca satisfeitos.
E a vida passava o tempo tentando casar o que não precisava, de olhos fechados, desatenta.

24.11.13

Sonho III

Vera. Por que se submete a esse tipo de tratamento? Você deve se impor.
O olhar de Vera era de medo, de sofrimento, sobretudo. Um sofrimento causado por extrema covardia e falta de pulso firme. Com olhos trêmulos, Vera balançava a cabeça negando, dizendo "não" para qualquer ação que a tirasse daquela situação. Que a tirasse daquela perseguição.
Algo sobre uma figura masculina opressora, predadora. Oprimia Vera, esmagava Vera contra o solo.
E Vera tinha mãos e olhos trêmulos, impotentes.
Eu negava com a cabeça, com palavras absurdas. Faça algo, Vera! Você não pode se submeter a isso!
E não era possível. Se ele notasse alguma reação, se ele notasse alguma rebeldia, a represália seria imediata.
Faça! Grite! Mude!
Vera nega, e sugere que eu me acalme. Pegue seu café no fogão, se acalme.
Eu vou até a cozinha e em movimentos lentos de câmera noto o gás escapando.
E ao mesmo tempo que a explosão ocorre, sei que fora ele.
Cor negra e som agudo final aos ouvidos.
Eu não posso morrer assim, repeti diversas vezes dentro de minha caixa craniana. Em desespero, no início. E logo com certo alívio e curiosidade por ainda haver consciência. A escuridão e som agudo continuaram até que eu despertasse às 6 da manhã.

16.7.13

Morte em linha reta

Sempre que precisava andar com a mulher grávida na rua, para algum compromisso a que era convocado, Adão parecia andar como quem tinha duas pernas esquerdas.
Desde que ela engravidara, desde a noite fatídica em que ela dera a notícia de sua gravidez, Adão sentia-se embriagado e fora de si. À parte. Aquela vida não era a dele e, por isso, seria um expectador, olhando do alto. Enquanto isso fazia tudo com desastre, sem prestar atenção. Sua mulher o guiava. Benzinho, você esqueceu a mala de emergência no carro, coisas do tipo.
Assim se passaram os meses, os torturantes meses da gravidez. Tudo era um grande evento em que Adão se sentia um pino deslocado. Havia firulas, chás, compras sem fim, listas e mais listas de nomes para o bebê. Adão opinava em vão.
Essa seria a consulta para que marcassem o parto. Nascimento programado. Ela estivera a semana toda empolgada com as datas em que possivelmente se completariam as semanas de amadurecimento do bebê. Algo sobre signos, horóscopo. Adão se tornava cada vez mais ansioso, não sabia a razão. Era involuntário.
O médico, atencioso, disse que dali duas semanas o bebê podia nascer de cesariana. Era mais seguro. Assim, os pulmões estariam já maduros, no que Adão pensou em duas pêras pneumáticas, amarelinhas e suculentas. E o bebê engordaria. A imaginação de Adão ia longe.
Porém, disse o médico por fim, porém o bebê pode vir naturalmente, mãe. O médico não discursava ao pai. Era sempre mãe, mãe, mãe.
O bebê poder vir naturalmente assim que se completarem as semanas. A qualquer momento. Quando você sentir um líquido “estranho”, dores, contrações... mas a atenção de Adão se fora assim que o médico proclamou a sentença. A qualquer momento, naturalmente.
Ora, a Natureza não tem tempo, Adão, disse pra si. Isso não faz sentido, não faz! Os neurônios dele fritavam feito shimeji na manteiga. 
O médico se referia a ele agora - pai, fique atento aos sinais. O médico fechou os olhos poucos milímetros, mas Adão tinha boa visão, ah, se tinha. Notou a ameaça velada, fique atento aos sinais e, em qualquer sinal de trabalho de parto, corra pro hospital. A qualquer momento, pai, a qualquer momento assim que se completarem as semanas.
Aquilo não fazia o menor sentido. A imaginação de Adão ia longe. Iremos sentar, comer, tomar banho, cortar as unhas, dormir e esperar. Ficar atentos com o tempo natural da Natureza. Então o nascimento, que não tem segredo nenhum, veja você, até agora, é feito uma morte ao contrário. Riu. Otário. Claro - claro – que o nascimento é a morte ao contrário.
Vou ficar preparado como um corredor fica inclinado na largada, pensou.
Seu cérebro deu um estalo. Não, fora só um insight medonho. Mas pensou ter ouvido o estalo. Então é assim, vida? Sim. Estou esperando a morte ao contrário do meu filho enquanto a minha própria – morte em linha reta, no caso – eu não sei quando vem. Mas vem. É natural, no tempo bizarro de ponteiros loucos da Natureza. E agora, e agora?
Levantou-se. O médico, que ainda discursava para a gestante, parou para fitá-lo. Sua mulher virou para olhá-lo com um rosto interrogativo.

Doutor, gostaria de marcar meu parto ao contrário. 

9.7.13

Uma lembrança, antes que me esqueça dela de novo.

Não lembro quando, minha sobrinha iria dormir em casa. Então minha irmã, mãe dela, me pediu pra comprar um pacote de fraldas porque, mesmo ela tendo saído delas, durante a noite tinha usar por precaução.
Fomos de carro, meu irmão e eu, ao supermercado. 
Peguei o pacote de fraldas caríssimo e nos dirigimos ao caixa.
Uma fila gigantesca.
Meu irmão não cultiva muito o silêncio. Ele é como a grande esmagadora parte da população que gosta de papear, puxar assunto e não deixar espaços silenciosos. Sim, tendencio ao silêncio: é um bom exercício. E estava de mau humor. Mas ele, vez ou outra, consegue dissipar o mau humor das pessoas. Afrouxei.
A senhora que estava a nossa frente na fila escutava nossa conversa. Só falávamos bobagens então não tinha importância alguma.
Não lembro qual parte do diálogo fez com que a dona se voltasse pra gente pra rir. Daí começamos a conversar descompromissadamente. Falávamos sobre dietas.
Ela disse que sempre que ia à nutricionista e esta te indicava uma dieta, ela sempre acabava engordando.
"Sigo minha própria dieta, sabe. Quando faço por conta, emagreço. Aí, e médica passa aquela lista de comidas pra comer - tudo bem caro, por sinal (pra ser saudável tem que pagar caro em coisas light e diet) - e seguia à risca, tudo certinho. E não é que engordava? Desisti. Tá vendo isso aqui? Tô levando esse monte de carne é pro churrasco de dia das mães. Mas é pro marido, pra criançada. Não como nada disso não, muito pouco. O problema é colesterol. Problema do coração, pressão alta - sofro de pressão alta. E tem diabetes na família também. A gente se preocupa com tudo isso. Mas e o tempo pra ir fazer caminhada de manhã? E essa da dieta também, como é que faz certo?".
Quando estávamos indo pro carro, esperava algum comentário debochado do meu irmão. Ele só disse: Viu, somos todos muito parecidos mesmo.


5.6.13

Sobre São Paulo

Há um banheiro numa galeria na Liberdade. Fica no subsolo, em frente ao cara que faz peeling e acupuntura. É um dos banheiros mais limpinhos.
Já fiz várias incursões pela cidade de São Paulo. A última vez, me perdi um pouco dentro da Estação da Sé. Ando boiando ouvindo alguma música e, às vezes, sigo o fluxo e acabo na direção errada. Mas quando me perco não fico preocupada, confio demais em placas e coisas do tipo. Acabo encontrando a direção. Etc.
Assim, quando vou a São Paulo, ando demasiadamente. 
Tive que voltar da Cidade Universitária, uma vez, sem ao menos saber que ônibus devia tomar. Lembro que estava frio e, zanzando perto da Estação Anhangabaú, pensei se conseguiria enganar os transeuntes ou se na minha cara estava estampado “forasteira”. Bobagem: todos que zanzam por São Paulo são forasteiros. 
Outra vez, fui assistir a uma peça com um amigo. Ele me fez andar quase a Consolação inteira e garoava. Mais tarde, passei o resto do dia na Livraria Cultura (um dia muito gelado, por sinal). Repetidas vezes andei a linha azul inteira pra chegar ao Terminal do Jabaquara.
Perambulei pela Vila Madalena, em 2010, buscando um lugar pra almoçar. Sozinha, num congresso. Ao que um grupo de estudantes do mesmo congresso me chamou pra almoçar. Então todos, perdidos e estranhos, procuraram um restaurante naquele bairro metido à besta. Encontramos um vegetariano estranhíssimo.
Tomei vários cafezinhos numa padaria muito suspeita na Virada Cultural, perto da 25 de Março. Marquei de encontrar com um amigo lá e, quando chegou, perguntou que diabos eu fazia num pardieiro daqueles.


Já andei pela linha amarela só pra ver como era bonita. Fui ao Museu do Ipiranga só olhar aquele jardim. Fui ao Museu da Língua Portuguesa, ao MASP. Ao zoológico. Comer pão com mortadela no Mercado. Por curiosidade mórbida já peguei metrô na Estação Corinthians-Itaquera de manhãzinha (e não é nem um pouco agradável). Já andei pela Vila Formosa. Aliás, já andei do Tatuapé até a Vila Formosa. A pé.
Minha memória tende a falhar e não sei quantas vezes andei por São Paulo, e gosto muito de lá (daí, se aí você se encontra). E, claro, quando converso com um paulistano ou alguém que mora em São Paulo, dizem que meu gosto pela cidade é puramente coisa de turista.
Pode até ser. Se eu morar um dia em São Paulo ficarei tão entediadamente ocupada com algum emprego e não verei o metrô do mesmo jeito. Nem as ruas, nem as pessoas desconfiadas e simpaticamente mal-educadas. Talvez eu até encarne a cara de zumbi das pessoas do trem.

Mas é uma bela cidade para a solitude e incursões sem propósito. De qualquer forma, há um banheiro limpo e confiável na Liberdade, subsolo de uma galeria de quinquilharias, pode confiar.