27.11.11

Os lapsos estão cada vez mais contínuos / Em seguida, entabulamos uma conversa tão louca que até hoje duvido

Os lapsos estão cada vez mais contínuos.

Última rodoviária para pegar os últimos passageiros, e então o ônibus partiria sem mais transtornos.
“Você é de São José? Sou de Jacareí”. Algumas pessoas dialogam sozinhas; não precisam necessariamente de uma resposta. Não sei o que há de errado com as palavras que algumas pessoas precisam livrar-se delas a qualquer custo. Geralmente, eu sempre concordo com a cabeça; ou então digo “é verdade”. Isso encerra qualquer conversa fiada, se a pessoa tiver bom senso.
Passou-se um tempo e/ou dormi – minha memória não anda tão bem assim pra lembrar da sucessão de coisas que aconteceram na semana passada (sim, isso é grave); mas houve uma hora que o senhor veio me falar que fazia parte do “Amigos do Fusca” e que certamente eu poderia tê-lo visto na TV por conta disso. “Ajudamos o pessoal, arrecadamos cestas básicas, essas coisas...”.


Em seguida, entabulamos uma conversa tão louca que até hoje duvido.

“Você estuda Química? – Mas que coincidência, eu trabalho com papel e celulose há 32 anos!”. Não propriamente Química mas, sim, uma coincidência. Contou que estava aposentando. “Cansei, quero fazer o que gosto. E o que gosto é andar de bicicleta. Já cobri São Paulo, Rio e o Paraná. Ainda quero percorrer o Brasil inteiro.” Me contou em detalhes da vez que cobriu os três estados, as cidades por onde passou, o cansaço. Tinha até aparecido na TV. “Eu chegava nas cidades fedendo, cansado depois de horas pedalando. Dependendo da cidade, o prefeito tava me esperando. Em outras, tinha uma multidão com palco e tudo esperando eu chegar”. Perguntei como era o treino pra ter tanta resistência assim. “Um amador pode pedalar uma, duas horas. Mas depois, as panturrilhas começam a queimar; o fracasso vem. O treino é o seguinte: um dia você pedala dez quilômetros, e vai aumentando dia a dia. Quando você atingir os cem quilômetros, você pode fazer o que eu faço.” E me contou que sofreu acidente parado, no semáforo, logo depois de sua maratona - um momento de má sorte. Teve que se afastar dois anos depois de fazer cirurgia no ombro devido à fratura exposta. O motociclista que colidiu com ele havia também se machucado, mas não tão gravemente. E chorava de dor, disse ele. “Não seja mole, rapaz. Veja isto” disse ele, mostrando o osso exposto.
Aquele caminho que fazíamos, de mais ou menos duas horas de carro, ele também costumava fazer de bicicleta. Pegava a bicicleta e pedalava de Jacareí até Cunha, cidade dos pais dele. “Gosto de treinar lá, tem mais morros e o treino é mais forte. Agora preciso começar a me preparar. Em Março quero começar pelo Mato Grosso. Será que agüento até lá? Tenho sessenta e dois anos!” E riu, mostrando seus pés de galinha.
Me contou outras coisas, que o motivo daquela viagem era pegar os papéis de seu divórcio. Estava separado de sua esposa já fazia oito anos, mas vivendo sob o mesmo teto. “Somos amigos, nos respeitamos. Pra viver com alguém que você já não ama romanticamente, tem que ser na amizade. Agora, com o divórcio, me mudei; tenho minha própria casa, faço o que quero”. Contou dos filhos, duas cadeirantes, um adotivo. Contou da família, que quase toda é de comerciantes.
E, por fim, explicou-me em detalhes o processo de celulose e prometeu me enviar pacotinhos de celulose pras minhas aulas na faculdade.
Claro que não vi a hora passar e já estávamos chegando à rodoviária. E ele: “Que cansaço. Quando chegar em casa ainda tenho que fazer o jantar”.
E eu, intrigada, me despedi.

22.11.11

Uma Descrição da Dor / Uma Longa Hora Depois / Acabei dormindo por cinquenta minutos na poltrona nove imaginárias; tal como anos bissextos.

Uma Descrição da Dor.

Ando sempre atrasada como se o azar colaborasse com isso. Porque quem planeja não deveria se atrasar como eu o faço. Tratam-se de sucessões de atrasos, de “não acredito que você ainda não sabia disso” , de dp’s, de estar um triz de distância de onde eu devia estar agora.
Eis que estava em tempo de pegar o ônibus, três da tarde sairia, eram duas e cinquenta e seis; tempo suficiente para os 50 metros que me restavam. Duas e cinquenta e sete o ônibus passou correndo ali na frente, no que parecia a exceção de se sair mais cedo que o motorista fez. Exceções sempre ferem uns desavisados que esperam por regra. Planejar horários e crer piamente que dá pra percorrer 50 metros em 3 minutos deixa de ser uma verdade newtoniana assim que o motorista toma a exceção de sair mais cedo.
Minhas panturrilhas queimavam depois do meu trote desajeitado: calça jeans, bolsa, calor. Agora eu podia fazer tudo sem hora pra fazer nada. Ótimo: uma hora inteira esperando o próximo ônibus na rodoviária. Vendo novela e bebendo Schweppes.

Uma Longa Hora Depois.

Sete ônibus passantes (nenhum para meu destino), um refrigerante, oito balas de goma, meia novela e um pouco de pessimismo depois; finalmente meu ônibus estacionou na plataforma. Naturalmente, me levantei e fui na direção; dando o nítido aviso de que eu merecia entrar primeiro já que havia esperado uma hora ali.
Poltrona nove. Minha propriedade temporária: poltrona nove. Ninguém me incomodaria pra sair do lugar, o que acontece muito nesses ônibus que pegam punhados de gente pelo caminho que se sentam nos lugares demarcados dos passageiros da próxima rodoviária. Enfim.
Um, dois; três, quatro; cinco, seis; sete, oito; onze, doze. O tipo de coisa que só acontece em desaniversários, decerto.

Acabei dormindo por cinquenta minutos na poltrona nove imaginárias; tal como anos bissextos.

Forcei-me a despertar, porque podia estar chegando. Engano meu, visto o trânsito. Nada de pânico à partir dali: pelo menos ninguém me tirou do meu lugar. O lugar ao meu lado, outrora vazio, foi ocupado por um senhor de meia-idade. Ao que abri os olhos, ele veio falar que estava ali porque algum passageiro malvado havia sentado no lugar dele. “É chato pegar alguém no lugar que já estava marcado, mas também é chato pedir pra sair”. Então expliquei a ele, com a sabedoria de quem toma aquele itinerário há um tempão, que a culpa era da viação por ir lotando o ônibus no caminho sem verificar as poltronas. Acho que ele entendeu.

Continua...