24.11.13

Sonho III

Vera. Por que se submete a esse tipo de tratamento? Você deve se impor.
O olhar de Vera era de medo, de sofrimento, sobretudo. Um sofrimento causado por extrema covardia e falta de pulso firme. Com olhos trêmulos, Vera balançava a cabeça negando, dizendo "não" para qualquer ação que a tirasse daquela situação. Que a tirasse daquela perseguição.
Algo sobre uma figura masculina opressora, predadora. Oprimia Vera, esmagava Vera contra o solo.
E Vera tinha mãos e olhos trêmulos, impotentes.
Eu negava com a cabeça, com palavras absurdas. Faça algo, Vera! Você não pode se submeter a isso!
E não era possível. Se ele notasse alguma reação, se ele notasse alguma rebeldia, a represália seria imediata.
Faça! Grite! Mude!
Vera nega, e sugere que eu me acalme. Pegue seu café no fogão, se acalme.
Eu vou até a cozinha e em movimentos lentos de câmera noto o gás escapando.
E ao mesmo tempo que a explosão ocorre, sei que fora ele.
Cor negra e som agudo final aos ouvidos.
Eu não posso morrer assim, repeti diversas vezes dentro de minha caixa craniana. Em desespero, no início. E logo com certo alívio e curiosidade por ainda haver consciência. A escuridão e som agudo continuaram até que eu despertasse às 6 da manhã.

16.7.13

Morte em linha reta

Sempre que precisava andar com a mulher grávida na rua, para algum compromisso a que era convocado, Adão parecia andar como quem tinha duas pernas esquerdas.
Desde que ela engravidara, desde a noite fatídica em que ela dera a notícia de sua gravidez, Adão sentia-se embriagado e fora de si. À parte. Aquela vida não era a dele e, por isso, seria um expectador, olhando do alto. Enquanto isso fazia tudo com desastre, sem prestar atenção. Sua mulher o guiava. Benzinho, você esqueceu a mala de emergência no carro, coisas do tipo.
Assim se passaram os meses, os torturantes meses da gravidez. Tudo era um grande evento em que Adão se sentia um pino deslocado. Havia firulas, chás, compras sem fim, listas e mais listas de nomes para o bebê. Adão opinava em vão.
Essa seria a consulta para que marcassem o parto. Nascimento programado. Ela estivera a semana toda empolgada com as datas em que possivelmente se completariam as semanas de amadurecimento do bebê. Algo sobre signos, horóscopo. Adão se tornava cada vez mais ansioso, não sabia a razão. Era involuntário.
O médico, atencioso, disse que dali duas semanas o bebê podia nascer de cesariana. Era mais seguro. Assim, os pulmões estariam já maduros, no que Adão pensou em duas pêras pneumáticas, amarelinhas e suculentas. E o bebê engordaria. A imaginação de Adão ia longe.
Porém, disse o médico por fim, porém o bebê pode vir naturalmente, mãe. O médico não discursava ao pai. Era sempre mãe, mãe, mãe.
O bebê poder vir naturalmente assim que se completarem as semanas. A qualquer momento. Quando você sentir um líquido “estranho”, dores, contrações... mas a atenção de Adão se fora assim que o médico proclamou a sentença. A qualquer momento, naturalmente.
Ora, a Natureza não tem tempo, Adão, disse pra si. Isso não faz sentido, não faz! Os neurônios dele fritavam feito shimeji na manteiga. 
O médico se referia a ele agora - pai, fique atento aos sinais. O médico fechou os olhos poucos milímetros, mas Adão tinha boa visão, ah, se tinha. Notou a ameaça velada, fique atento aos sinais e, em qualquer sinal de trabalho de parto, corra pro hospital. A qualquer momento, pai, a qualquer momento assim que se completarem as semanas.
Aquilo não fazia o menor sentido. A imaginação de Adão ia longe. Iremos sentar, comer, tomar banho, cortar as unhas, dormir e esperar. Ficar atentos com o tempo natural da Natureza. Então o nascimento, que não tem segredo nenhum, veja você, até agora, é feito uma morte ao contrário. Riu. Otário. Claro - claro – que o nascimento é a morte ao contrário.
Vou ficar preparado como um corredor fica inclinado na largada, pensou.
Seu cérebro deu um estalo. Não, fora só um insight medonho. Mas pensou ter ouvido o estalo. Então é assim, vida? Sim. Estou esperando a morte ao contrário do meu filho enquanto a minha própria – morte em linha reta, no caso – eu não sei quando vem. Mas vem. É natural, no tempo bizarro de ponteiros loucos da Natureza. E agora, e agora?
Levantou-se. O médico, que ainda discursava para a gestante, parou para fitá-lo. Sua mulher virou para olhá-lo com um rosto interrogativo.

Doutor, gostaria de marcar meu parto ao contrário. 

9.7.13

Uma lembrança, antes que me esqueça dela de novo.

Não lembro quando, minha sobrinha iria dormir em casa. Então minha irmã, mãe dela, me pediu pra comprar um pacote de fraldas porque, mesmo ela tendo saído delas, durante a noite tinha usar por precaução.
Fomos de carro, meu irmão e eu, ao supermercado. 
Peguei o pacote de fraldas caríssimo e nos dirigimos ao caixa.
Uma fila gigantesca.
Meu irmão não cultiva muito o silêncio. Ele é como a grande esmagadora parte da população que gosta de papear, puxar assunto e não deixar espaços silenciosos. Sim, tendencio ao silêncio: é um bom exercício. E estava de mau humor. Mas ele, vez ou outra, consegue dissipar o mau humor das pessoas. Afrouxei.
A senhora que estava a nossa frente na fila escutava nossa conversa. Só falávamos bobagens então não tinha importância alguma.
Não lembro qual parte do diálogo fez com que a dona se voltasse pra gente pra rir. Daí começamos a conversar descompromissadamente. Falávamos sobre dietas.
Ela disse que sempre que ia à nutricionista e esta te indicava uma dieta, ela sempre acabava engordando.
"Sigo minha própria dieta, sabe. Quando faço por conta, emagreço. Aí, e médica passa aquela lista de comidas pra comer - tudo bem caro, por sinal (pra ser saudável tem que pagar caro em coisas light e diet) - e seguia à risca, tudo certinho. E não é que engordava? Desisti. Tá vendo isso aqui? Tô levando esse monte de carne é pro churrasco de dia das mães. Mas é pro marido, pra criançada. Não como nada disso não, muito pouco. O problema é colesterol. Problema do coração, pressão alta - sofro de pressão alta. E tem diabetes na família também. A gente se preocupa com tudo isso. Mas e o tempo pra ir fazer caminhada de manhã? E essa da dieta também, como é que faz certo?".
Quando estávamos indo pro carro, esperava algum comentário debochado do meu irmão. Ele só disse: Viu, somos todos muito parecidos mesmo.


5.6.13

Sobre São Paulo

Há um banheiro numa galeria na Liberdade. Fica no subsolo, em frente ao cara que faz peeling e acupuntura. É um dos banheiros mais limpinhos.
Já fiz várias incursões pela cidade de São Paulo. A última vez, me perdi um pouco dentro da Estação da Sé. Ando boiando ouvindo alguma música e, às vezes, sigo o fluxo e acabo na direção errada. Mas quando me perco não fico preocupada, confio demais em placas e coisas do tipo. Acabo encontrando a direção. Etc.
Assim, quando vou a São Paulo, ando demasiadamente. 
Tive que voltar da Cidade Universitária, uma vez, sem ao menos saber que ônibus devia tomar. Lembro que estava frio e, zanzando perto da Estação Anhangabaú, pensei se conseguiria enganar os transeuntes ou se na minha cara estava estampado “forasteira”. Bobagem: todos que zanzam por São Paulo são forasteiros. 
Outra vez, fui assistir a uma peça com um amigo. Ele me fez andar quase a Consolação inteira e garoava. Mais tarde, passei o resto do dia na Livraria Cultura (um dia muito gelado, por sinal). Repetidas vezes andei a linha azul inteira pra chegar ao Terminal do Jabaquara.
Perambulei pela Vila Madalena, em 2010, buscando um lugar pra almoçar. Sozinha, num congresso. Ao que um grupo de estudantes do mesmo congresso me chamou pra almoçar. Então todos, perdidos e estranhos, procuraram um restaurante naquele bairro metido à besta. Encontramos um vegetariano estranhíssimo.
Tomei vários cafezinhos numa padaria muito suspeita na Virada Cultural, perto da 25 de Março. Marquei de encontrar com um amigo lá e, quando chegou, perguntou que diabos eu fazia num pardieiro daqueles.


Já andei pela linha amarela só pra ver como era bonita. Fui ao Museu do Ipiranga só olhar aquele jardim. Fui ao Museu da Língua Portuguesa, ao MASP. Ao zoológico. Comer pão com mortadela no Mercado. Por curiosidade mórbida já peguei metrô na Estação Corinthians-Itaquera de manhãzinha (e não é nem um pouco agradável). Já andei pela Vila Formosa. Aliás, já andei do Tatuapé até a Vila Formosa. A pé.
Minha memória tende a falhar e não sei quantas vezes andei por São Paulo, e gosto muito de lá (daí, se aí você se encontra). E, claro, quando converso com um paulistano ou alguém que mora em São Paulo, dizem que meu gosto pela cidade é puramente coisa de turista.
Pode até ser. Se eu morar um dia em São Paulo ficarei tão entediadamente ocupada com algum emprego e não verei o metrô do mesmo jeito. Nem as ruas, nem as pessoas desconfiadas e simpaticamente mal-educadas. Talvez eu até encarne a cara de zumbi das pessoas do trem.

Mas é uma bela cidade para a solitude e incursões sem propósito. De qualquer forma, há um banheiro limpo e confiável na Liberdade, subsolo de uma galeria de quinquilharias, pode confiar.

28.4.13

Cigarros imaginários


Sinaliza uma circunferência com o dedo indicador.
- Mas eu sei de uma melhor - “Eu” com ênfase demasiada – ou pior, como quiserem.
Ajeitou-se na cadeira na postura de um cúmplice.
- Minha prima – pausa para olhar para a cara de todos. Dentre desinteressados e acenos com a cabeça, continuou – vocês não a conhecem, ela não mora na cidade. Não sei como ela suporta essa vida, coitada. Ela arranjou esse namorado há um ano e meio, eles se conheceram em um espaço para fumantes numa balada, não lembro qual.
O garçom voltava com a outra cerveja que ela pedira.
- Obrigada. Pois bem, marcaram de ser encontrar mais uma vez. E outra... E outra. E então meio que já estavam namorando. Ela foi um pouco tola, claro. Quando percebeu, já estavam muito grudados, interferindo em tudo na vida um do outro. Ele era muito ciumento. Muito. Quase perdeu todos os amigos, porque foi se afastando, recusando convites... Enfim.
Quis terminar com tudo aquilo há uns oito meses atrás, ela estava realmente sobrecarregada, sem vida social nenhuma – bebericou a cerveja e seus dedos ficaram gelados por causa do copo – E claro, ele chorou, se recusou em perdê-la. Duvidou da fidelidade dela e a ameaçou. Ela não levou aquilo à sério, ela não estava o traindo. Só estava querendo respirar de novo. Ele disse que ela não arranjaria mais ninguém, que não ficaria com mais ninguém, etc, etc. Ela não tomou nada daquilo como verdade. Ele estava nervoso, tudo melhoraria com o tempo. Estavam fazendo mal um ao outro.
Passou-se um mês, e não se falaram nesse tempo. Mas às vezes o telefone dela tocava às 2 da manhã e ficava mudo do outro lado – riu um riso nervoso – marcou um cinema com um amigo uma vez, e mais uma vez seu telefone tocou numa madrugada qualquer. Ele disse que estava vigiando, que ela tomasse cuidado. Não sei em que dimensão que isso ficou, mas ela resolveu se mudar daqui, foi para Curitiba. Lá, achou que recomeçaria tranquila, mas, depois de um tempo ele havia descoberto. Acordou e, ao seu lado na cama, havia um revólver. Minha prima ficou transtornada, resolveu mudar-se mais uma vez. Dessa vez para Cuiabá.
Suspirou.
- Há um tempo não falo com ela. Não sei como reagiria numa situação dessas. Claro, já tive um episódio estranho, mas não como este!
Agora tinha mais atenção do que no início da história.
-Estava voltando de Sorocaba de ônibus, era meio-dia, ou uma hora. Não lembro. Então chegou uma sms no celular. Dizia “oi, tudo bem? Para quem escrevo?” ou algo assim. Era de um número fora da minha lista de contatos, ali da região mesmo. Perguntou se eu era homem ou mulher. Daí descobri que era homem. Conversamos muito; perguntou como eram meus cabelos. Fui me acostumando com a cadência da conversa, esperando as sms. Achei aquilo uma aventura interessante. O que fazia da vida, se trabalhava, o que gostava de fazer nas horas vagas, qual tipo de música ouvia. No fim, uma pergunta ficou no ar... Ele não respondeu mais. Fiquei esperando mais um tempo, mas resolvi não mandar mais nenhuma. Sequer soube o nome dele. Nem ele o meu. Às vezes penso sobre aquele dia. É engraçado como duas pessoas tem formas tão diversas de se encontrar. E ao mesmo tempo isso é tão perigoso.
Riu reticente, olhando para algum ponto no infinito. As pessoas conversavam, respondiam. Sua atenção foi para o espaço. Algo emoliente havia batido contra seu peito, agora tudo estava meio aquoso, suave.


4.4.13

Desconstrução.


**
O sujeito, um pouco magro e precisando de exercícios físicos, entrou no corredor à esquerda e foi andando, contando mentalmente até chegar à sala em que devia entrar.
Bateu duas vezes e, pelo som abafado que vinha de lá de dentro, soube que podia entrar. A sala – ou consultório, ou escritório, ou seja lá como queriam que se chamasse, era sóbria e masculina. A vista assustadora, emoldurada por janelas que iam até o teto, fizeram-no tremer de covardia mais uma vez.
Devido a tudo que já havia visto e temia ver a cada instante, era tomado por um arrepio incontrolável; um medo que fazia arrepiar sua nuca e espinha. Uma covardia legítima da vida.
- Entre, entre - o homem de voz grave gesticulou impacientemente com os braços, para que o rapaz entrasse logo – acho que já disse ao senhor, não precisa bater antes de entrar. Sem cerimônias.
O rapaz deu uns passos até o senhor, que o contemplava de sua mesa, cotovelos no vidro frio. Sentou-se defronte e esperou que o anfitrião começasse a falar.
- Em quê paramos, Manu? – o homem perguntava perguntas retóricas. Manu sabia quando ficar quieto; quando dar sinal com a cabeça e, se a pausa fosse um pouco mais longa, era hora de falar.
- Paramos... Em qualquer coisa sobre meu jardim de infância. Eu falava da Diana.
- Quanto tempo você disse que não a vê?
Ele ri baixinho. Não via Diana há dois anos. Uma frieza ao constatar isso: fazia dois anos que não via sua irmã. Flashes das brincadeiras estúpidas, da pancadaria que não doía. Ela era o chefe, Manu só tinha medo de qualquer consequência, seja em forma de castigo ou algum machucado. Diana ria, ria e ria.
E a vez em que Diana estava tão quieta, Manu não soube contornar. Vê-la ali, quieta de forma não habitual. Quieta de forma não natural. Manu a provocou, foi seu momento de suprema coragem, foi a vez de Manu rir. Já passavam pela fase em que as partes do corpo crescem desordenadamente, os braços são compridos demais, as pernas tem pelos. Manu ria e caçoava, pois mamãe não deixava Diana tirar os pelinhos loiros e ralos de suas pernas.  A menina vivia enfiada num jeans, numa camiseta amarrada na cintura fina. E desta vez estava quieta demais para o deleite de Manu.
A lembrança era nítida e o estômago de Manu não aguentava tudo isso. Como num holograma esverdeado, Diana surgiu em sua frente naquele dia em que Manu registraria para sempre como um divisor de águas da relação dos dois.
Quando completaram 15 anos, os gêmeos Manu e Diana, a menina enveredou-se num universo que Manu não via sentido.
A confusão e a dúvida que surgiram quando tudo mudou, bem registrados na excepcional memória de Manu, estavam mais nítidos do que nunca.
Lembrou-se da tarde em que Diana trouxe colegas do colégio para qualquer coisa à tarde em sua casa. Diana, num surto normal de adolescência, excluiu Manu em todo o evento. Fez de Manu um espectro, invisível. De fato, sem Diana, Manu era invisível.
Foi abaladíssimo para seu quarto e devorou vários gibis a tarde toda. Até que não houvesse som de nenhum estrangeiro no andar de baixo. Até que ouvisse Diana entrando em seu quarto, colado com o dele, e batesse a porta.
E tudo não passava de um mix de hormônios e cultura pop.
- Faz dois anos.
- Como você vê a ausência dela, hoje em dia?
- A ausência, que o senhor diz, eu notei quando éramos adolescentes. Não sei se lido muito bem com isso.
O corpo de Manu tremia, tornava-se um pouco menos robusto, a pele cheia de espinhas, o cabelo alvoroçado. Manu voltou a ser adolescente. Seu assunto com Diana, congelado em seus órgãos internos, se retomado, se lembrado, faziam-no adolescente mais uma vez. Até quando pensava em Diana, era um adolescente que remoia.
- Ainda penso em Diana como um adolescente. O senhor acha isso estranho?
- Acho que devido a seu problema, posso entender o porquê.
O anfitrião fez trejeitos com o corpo, indicando que iria mudar de assunto. Manu esperou que ele se espreguiçasse e mudasse mais uma vez a posição dos braços e pernas e escutou.
- Bom. Temos um bom material aqui, Manu. Talvez seja de grande utilidade, não é?
- Mas...? – Interrompeu o jovem.
- Mas receio que esses papéis não passam de subterfúgios.
- Subterfúgios para o assunto que lhe interessa.
- A mim não, mas a quem me contratou – O senhor respirou fundo, arcando os ombros, numa espécie de dança de competição entre machos, intimidando o oponente. E falou, baixinho -  preciso da versão detalhada do momento de seu nascimento.
Manu riu alto.
- Vamos recorrer à regressão? Eletrodos? Eletroencefalograma? O que o senhor quer de mim?
O desdém fingido de Manu era fruto de anos de prática. Depois de uma adolescência em atrito consigo mesmo, tentando convencer as pessoas que ia “bem”. Ir “bem” era desdenhar e mostrar orgulho. Orgulho sem ter feito nada que valesse.  Atrás do orgulho, uma camada de medo legítimo. Com dezoito anos, deu conta que não pensava no futuro. É claro, na onda em que foi levado no final do colegial, havia optado por um curso em uma faculdade em São Paulo.  Entre estudos e caminhadas solitárias pela cidade, Manu conseguiu a vaga. Logo que se mudasse para São Paulo, ao desempacotar suas coisas medíocres pelo chão do apartamento embolorado, daria conta que não pensava no futuro. Nas vezes em que lhe ocorriam pensamentos obscuros como esses, um frio surgia no fundo do estômago e irradiava letalmente pelo corpo, dando-lhe a sensação de falta de chão. Sensação comum àquela de quando lembrava que ia morrer. Falta de chão, formigamentos, uma presença irritante e tão, tão certa. Sua presença.
Apesar da gravidade deste pensamento, Manu não fez nada.
Sua rotina era essa: desviar de seus medos, suas lembranças sombrias. Fechar-se para que ninguém notasse sua covardia. Orgulhar-se. Manu era um bom ator.
Três anos depois de tal pensamento, recebeu o telefonema saindo do banho. Entre aula e trabalho. Não pôde entender prontamente o que queriam lhe oferecer e aceitou. Ofereciam dinheiro em troca de. Ofereciam dinheiro em troca de entrevistas com jovens que. Ofereciam dinheiro em troca de entrevistas com jovens que se enquadrem no perfil e. E Manu tinha esse perfil. Departamento de Psicologia da faculdade, talvez.
Não deu a devida atenção, porque estava atrasado para o trabalho. Lembrou-se com precisão que vestiu a meia no pé esquerdo e teve que girá-la para a posição correta. Dinheiro em troca de. Calçou os sapatos, revezando o ombro em que ia o celular. Jovens que se enquadrem no perfil. E o senhor se adéqua a este perfil. E respondia “ahã” a cada pequena pausa da moça do outro lado da linha. Antes que a moça robótica pudesse falar qualquer coisa em adição, Manu respondeu, Sim, por que não? Por favor, me envie o endereço por e-mail. Meu e-mail é...tem uma caneta? OK... manu.prt@yahoo.com. E, me desculpe, estou atrasadíssimo...
E tratou de desligar o celular e correr à rua, deixando a moça sem direito de resposta. Lembrou-se que lhe ocorreu que a moça não fosse lhe enviar e-mail nenhum. E nem se preocupava.
 Mas estava ali. Esta e qualquer outra lembrança que brincasse em lembrar: acessíveis como uma gavetinha de alça confortável, que deslizaria até sua vista. Com material fácil de entender e ler. Até algumas fotografias e ilustrações.
- Sem regressão ou qualquer parafernália.
 - Então talvez queira o telefone de Diana, afinal, ela nasceu junto comigo.
- Não, só você tem algo a me dizer Manu. Diana mostrou-se por fora do assunto quando perguntei a ela.
Seu corpo tremeu de um ciúme adolescente.
Analisou numa fração de tempo o tamanho de seus braços, o tamanho dos braços do homem sentado a sua frente, as saídas possíveis, armas letais.
O momento de seu nascimento. De todas as lembranças, esta.
Dentre correr, machucar um inimigo: contar seu segredo. Seria em vão?
Manu ajeitou-se na cadeira, mostrando várias caras para seu interrogador, indo de raiva à frustração. À aceitação.
Manu encarou o homem, lívido. Acabaria logo com aquilo. Levantou-se, empurrou a cadeira para o outro lado da mesa, de modo que ficassem de frente um ao outro.
Lenta e cadenciadamente sussurrou.
Baleias, carrosséis, milk-shakes, bombinhas, araras-azuis e capivaras.



7.2.13

Breve resumo do desfecho de um inferno astral.

Você não vem jantar? 
Não consegue se conter. Os olhos escapam de seu desejo. Não é ofensivo, é auto-ofensivo. Vergonha alheia. Quando se vê, os olhos já retratam seu desejo, desviando a cabeça. Animal.
Não consegue se manter: há um fluxo de qualquer coisa inacabada na região do baixo ventre. Somos jovens, somos jovens! Há mais quinhentas e trinta e três possibilidades pela frente, tentativas, pessoas. Pessoas indo direto para o Orgânico; às vezes para o Reciclável.
Sou eu, sou jovem, estou aqui, me veja, me venere, SOU EU!
Quero mostrar o quanto consigo ser interessante. Curiosa e despreocupadamente interessante. Cabelos, pernas, e os olhos que teimam. 
Não há planos, não há linha de pensamento... Sou um lobo solitário e quero fazer o bem em detrimento do meu próprio.
Lembranças não morrem jamais. Isso ninguém tira (?).
Mas há tanto a viver!
Pare de cuidar de mim; desse acalento e segurança que não me pertencem.
Não, não tentarei ficar bem. Não tentarei ficar feliz. Quero que a TV me distraia. Quero que as coisinhas me distraiam. Quero que as luzes me ofusquem e me deixem em transe eterno.
Se você me chamar pra jantar, ou apagar a luz, ficarei com medo. E como irei encarar a mim mesmo?