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O sujeito, um pouco magro e
precisando de exercícios físicos, entrou no corredor à esquerda e foi andando,
contando mentalmente até chegar à sala em que devia entrar.
Bateu duas vezes e, pelo som
abafado que vinha de lá de dentro, soube que podia entrar. A sala – ou
consultório, ou escritório, ou seja lá como queriam que se chamasse, era sóbria
e masculina. A vista assustadora, emoldurada por janelas que iam até o teto,
fizeram-no tremer de covardia mais uma vez.
Devido a tudo que já havia visto e temia ver a cada instante, era tomado por
um arrepio incontrolável; um medo que fazia arrepiar sua nuca e espinha. Uma
covardia legítima da vida.
- Entre, entre
- o homem de voz grave gesticulou impacientemente com os braços, para que o
rapaz entrasse logo – acho que já disse ao senhor, não precisa bater antes de
entrar. Sem cerimônias.
O rapaz deu uns
passos até o senhor, que o contemplava de sua mesa, cotovelos no vidro frio. Sentou-se
defronte e esperou que o anfitrião começasse a falar.
- Em quê paramos,
Manu? – o homem perguntava perguntas retóricas. Manu sabia quando ficar quieto;
quando dar sinal com a cabeça e, se a pausa fosse um pouco mais longa, era hora
de falar.
- Paramos... Em
qualquer coisa sobre meu jardim de infância. Eu falava da Diana.
- Quanto tempo
você disse que não a vê?
Ele ri
baixinho. Não via Diana há dois anos. Uma frieza ao constatar isso: fazia dois
anos que não via sua irmã. Flashes das brincadeiras estúpidas, da pancadaria
que não doía. Ela era o chefe, Manu só tinha medo de qualquer consequência,
seja em forma de castigo ou algum machucado. Diana ria, ria e ria.
E a vez em que
Diana estava tão quieta, Manu não soube contornar. Vê-la ali, quieta de forma
não habitual. Quieta de forma não natural. Manu a provocou, foi seu momento de
suprema coragem, foi a vez de Manu rir. Já passavam pela fase em que as partes
do corpo crescem desordenadamente, os braços são compridos demais, as pernas
tem pelos. Manu ria e caçoava, pois mamãe não deixava Diana tirar os pelinhos
loiros e ralos de suas pernas. A menina
vivia enfiada num jeans, numa camiseta amarrada na cintura fina. E desta vez
estava quieta demais para o deleite de Manu.
A lembrança era
nítida e o estômago de Manu não aguentava tudo isso. Como num holograma
esverdeado, Diana surgiu em sua frente naquele dia em que Manu registraria para
sempre como um divisor de águas da relação dos dois.
Quando
completaram 15 anos, os gêmeos Manu e Diana, a menina enveredou-se num universo
que Manu não via sentido.
A confusão e a
dúvida que surgiram quando tudo mudou, bem registrados na excepcional memória
de Manu, estavam mais nítidos do que nunca.
Lembrou-se da
tarde em que Diana trouxe colegas do colégio para qualquer coisa à tarde em sua
casa. Diana, num surto normal de adolescência, excluiu Manu em todo o evento.
Fez de Manu um espectro, invisível. De fato, sem Diana, Manu era invisível.
Foi
abaladíssimo para seu quarto e devorou vários gibis a tarde toda. Até que não
houvesse som de nenhum estrangeiro no andar de baixo. Até que ouvisse Diana
entrando em seu quarto, colado com o dele, e batesse a porta.
E tudo não
passava de um mix de hormônios e cultura pop.
- Faz dois
anos.
- Como você vê
a ausência dela, hoje em dia?
- A ausência,
que o senhor diz, eu notei quando éramos adolescentes. Não sei se lido muito
bem com isso.
O corpo de Manu
tremia, tornava-se um pouco menos robusto, a pele cheia de espinhas, o cabelo
alvoroçado. Manu voltou a ser adolescente. Seu assunto com Diana, congelado em
seus órgãos internos, se retomado, se lembrado, faziam-no adolescente mais uma
vez. Até quando pensava em Diana, era um adolescente que remoia.
- Ainda penso
em Diana como um adolescente. O senhor acha isso estranho?
- Acho que devido
a seu problema, posso entender o
porquê.
O anfitrião fez
trejeitos com o corpo, indicando que iria mudar de assunto. Manu esperou que
ele se espreguiçasse e mudasse mais uma vez a posição dos braços e pernas e
escutou.
- Bom. Temos um
bom material aqui, Manu. Talvez seja de grande utilidade, não é?
- Mas...? –
Interrompeu o jovem.
- Mas receio
que esses papéis não passam de subterfúgios.
- Subterfúgios
para o assunto que lhe interessa.
- A mim não,
mas a quem me contratou – O senhor respirou fundo, arcando os ombros, numa
espécie de dança de competição entre machos, intimidando o oponente. E falou,
baixinho - preciso da versão detalhada
do momento de seu nascimento.
Manu riu alto.
- Vamos
recorrer à regressão? Eletrodos? Eletroencefalograma? O que o senhor quer de mim?
O desdém
fingido de Manu era fruto de anos de prática. Depois de uma adolescência em
atrito consigo mesmo, tentando convencer as pessoas que ia “bem”. Ir “bem” era
desdenhar e mostrar orgulho. Orgulho sem ter feito nada que valesse. Atrás do orgulho, uma camada de medo
legítimo. Com dezoito anos, deu conta que não pensava no futuro. É claro, na
onda em que foi levado no final do colegial, havia optado por um curso em uma faculdade
em São Paulo. Entre estudos e caminhadas
solitárias pela cidade, Manu conseguiu a vaga. Logo que se mudasse para São
Paulo, ao desempacotar suas coisas medíocres pelo chão do apartamento
embolorado, daria conta que não pensava no futuro. Nas vezes em que lhe
ocorriam pensamentos obscuros como esses, um frio surgia no fundo do estômago e
irradiava letalmente pelo corpo, dando-lhe a sensação de falta de chão.
Sensação comum àquela de quando lembrava que ia morrer. Falta de chão, formigamentos, uma presença irritante e tão,
tão certa. Sua presença.
Apesar da
gravidade deste pensamento, Manu não fez nada.
Sua rotina era
essa: desviar de seus medos, suas lembranças sombrias. Fechar-se para que
ninguém notasse sua covardia. Orgulhar-se. Manu era um bom ator.
Três anos
depois de tal pensamento, recebeu o telefonema saindo do banho. Entre aula e
trabalho. Não pôde entender prontamente o que queriam lhe oferecer e aceitou.
Ofereciam dinheiro em troca de. Ofereciam dinheiro em troca de entrevistas com
jovens que. Ofereciam dinheiro em troca de entrevistas com jovens que se
enquadrem no perfil e. E Manu tinha esse perfil. Departamento de Psicologia da
faculdade, talvez.
Não deu a
devida atenção, porque estava atrasado para o trabalho. Lembrou-se com precisão
que vestiu a meia no pé esquerdo e teve que girá-la para a posição correta.
Dinheiro em troca de. Calçou os sapatos, revezando o ombro em que ia o celular.
Jovens que se enquadrem no perfil. E o senhor se adéqua a este perfil. E
respondia “ahã” a cada pequena pausa da moça do outro lado da linha. Antes que
a moça robótica pudesse falar qualquer coisa em adição, Manu respondeu, Sim,
por que não? Por favor, me envie o endereço por e-mail. Meu e-mail é...tem uma
caneta? OK... manu.prt@yahoo.com. E, me
desculpe, estou atrasadíssimo...
E tratou de
desligar o celular e correr à rua, deixando a moça sem direito de resposta.
Lembrou-se que lhe ocorreu que a moça não fosse lhe enviar e-mail nenhum. E nem
se preocupava.
Mas estava ali. Esta e qualquer outra
lembrança que brincasse em lembrar: acessíveis como uma gavetinha de alça
confortável, que deslizaria até sua vista. Com material fácil de entender e
ler. Até algumas fotografias e ilustrações.
- Sem regressão
ou qualquer parafernália.
- Então talvez queira o telefone de Diana,
afinal, ela nasceu junto comigo.
- Não, só você
tem algo a me dizer Manu. Diana mostrou-se por fora do assunto quando perguntei
a ela.
Seu corpo
tremeu de um ciúme adolescente.
Analisou numa
fração de tempo o tamanho de seus braços, o tamanho dos braços do homem sentado
a sua frente, as saídas possíveis, armas letais.
O momento de
seu nascimento. De todas as lembranças, esta.
Dentre correr,
machucar um inimigo: contar seu segredo. Seria em vão?
Manu ajeitou-se
na cadeira, mostrando várias caras para seu interrogador, indo de raiva à frustração.
À aceitação.
Manu encarou o
homem, lívido. Acabaria logo com aquilo. Levantou-se, empurrou a cadeira para o
outro lado da mesa, de modo que ficassem de frente um ao outro.
Lenta e
cadenciadamente sussurrou.
Baleias,
carrosséis, milk-shakes, bombinhas, araras-azuis e capivaras.
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