14.7.10

Fragmentado.

***

Dentro do metrô é praticamente noite. As vezes em que a máquina passa por trechos descobertos não contam: no metrô só se faz noite, e as luzes sempre estão acesas. Isso dá motivo para aquela lâmpada piscar estrategicamente, conferindo uma aura que eu conheço bem.
Bando de répteis. Isso de “sangue-frio” vai além de um comportamento macabro ou estômago forte demais. Um bando de répteis com rostos cinzas, olhando pro nada, olhando para ninguém. Não se encaram, desviam olhares. Confissão de culpa. É o ar doentio do metrô, do subsolo; como uma pedra quente e um lagarto.
Seguram-se, guiados pela inércia; mecanimanente entram e saem.
Então você disse de súbito (me assustei) que pra quebrar o transe, nem um balde de água fria. Como se lesse meus pensamentos. E lia sim. Éramos dois dos zumbis com consciência.
Estava claro porque não respondi logo; porque não respondi hora alguma. “Tenho certeza que nos conhecemos”, aquela velha sentença. Que lembrava vagamente. Que meu rosto era familiar. Que tinha que.
As pessoas são muito iguais, mesmas fôrmas. Rostos similares passeiam por aí simultaneamente. Criatividade alguma, limitação. Sobretudo ali; ali são cinzas. Todos os gatos são pardos.
Podia ser que já tivéssemos nos cruzado pelas ruas, cada qual fitando o chão. Natural. Você sorria, havia descoberto um continente. Ou melhor, havia notado alguma similaridade. Algo que lhe chamou a atenção. Queria ser cúmplice. Lançar um olhar que só eu conseguiria ler.
E então você desceu na próxima estação.

***

Tento te explicar o que é azul.
Mostro o céu ( que hoje, em particular, me ajudou na exemplificação),
“É o azul que o colore”.
“O azul é azul?”
“É.”
Então você pegou o carrinho do bolso, azul. “Este também?”
“Também”.
Mais uns vinte objetos apontados aqui e ali.
“Também”.
Tapeação barata:
Não sei como é o azul de fora pra dentro dos seus olhos.

***

As mãos são instrumento de trabalho de toda gente.

***
Te avistei e logo a pulsação subiu. Não saberia o que falar, como começar. Iria gaguejar.
Nós, tímidos um do lado do outro. Desconfortáveis. As palavras certas eram erradas se proferidas naquele instante a além. Entonação. Resposta. Quero saber o que você pensa, quero invadir. Você o mesmo, é certo. Mas não há espaço. Quanto mais perto ficamos, mais o ar se torna rarefeito e as frases ridículas. Pelo menos é um ar com significado. Muito dele. Mas, difícil de respirar para ambos.
Aquele estar sem graça de sempre. Eu saio e você.
Nunca nos entenderemos (?).

***

Tenho para mim que não vai além de uma piada ruim.
Acordei com a palavra “raiz”, na cabeça; uma fixação que vez em quando me apodera. Fixar-me numa palavra.
Mas daí ela vai aparecer o resto do dia.
Não que eu fique caçando “raiz” em qualquer letreiro por aí.
A palavra vem atrás de mim e sempre me alcança.

Um comentário:

Anônimo disse...

Há um espírito aqui. O espírito não morre, mesmo que haja suficiente força para destroçar a carne. O espírito não é metafísico, não é divino, mas é o símbolo. O eterno símbolo humano que rasgará o tempo na sua luta incessante contra a fumaça...